NOTA DE REPÚDIO
“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. Angela Davis
A Associação Nacional da Advocacia Negra – ANAN vem a público repudiar veementemente as falas da cineasta brasileira, Luciana Tomasi que durante transmissão ao vivo de um debate promovido pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) que “ao ser questionada sobre a possível influência francesa no filme “Inverno” (1983), produzido por Luciana, e a europeização do cinema gaúcho, a produtora frisou os sobrenomes de origem europeia entre a maioria dos convidados”[1] e assim se pronunciou:
Não adianta a gente tentar fazer um filme da senzala, entende? (…) Eu inclusive tenho sangue francês (…) Cada um faz [filme] sobre a sua história…. –
Notadamente, as falas da cineasta demonstram aquilo que é enraizado na cultura brasileira: o racismo, acobertado pelo véu da liberdade de expressão, de pensamento, de posicionamento.
Relega a cineasta, a contribuição do povo preto para a formação da República Federativa do Brasil, limitando-nos a “senzala”; aos “chicotes”, aos “sofrimentos”, mantendo-se o discurso da supremacia branca (europeia) em detrimento da africana.
Demonstra a cineasta que apesar de ser uma influenciadora no mundo cinematográfico para ela só importa a sua origem europeia, os sobrenomes que carregam. Pouco lhe importa a história dos outros povos, negros e índios, para compor os seus filmes, séries, já que, segundo a mesma “não adianta fazer um filme de senzala”.
E não é só, a “fala” da cineasta foi referendada pelos risos dos demais participantes, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil que embora nada tenham dito, expressaram o racismo em seu riso.
Nessa toada, é importante reforçar que a única cineasta negra presente na transmissão ao vivo, Mariani Ferreira, insurgiu-se contra as declarações racistas de Luciana Tomasi, mostrando a força do povo preto que não mais se cala diante dos insultos:
Acho que tem duas coisas no cinema gaúcho que sempre me impressionam: essa coisa de mostrar uma Porto Alegre que é apenas um recorte da Porto Alegre real, não é a Porto Alegre total. Ao mesmo tempo em que essa Porto Alegre é a Porto Alegre dos Tomasi, dos Gerbasi, dos Adami, Porto Alegre também é a Porto Alegre dos Oliveira Silveira. Porto Alegre é onde nasceu o 20 de novembro [feriado do Dia da Consciência Negra]. É bem triste dizer que não se faz ‘filmes de senzala’ em Porto Alegre.
Ora, será que o único filme que o povo preto pode fazer parte, atuando, dirigindo, assistindo é aquele que evidencia o estereótipo da senzala, do açoite?! E os quilombos? A luta incessante pela liberdade? A rica cultura? Os cultos religiosos? A contribuição à teledramaturgia? A contribuição literária? O conhecimento do povo preto em todas as áreas? Nada importa?! Ou simplesmente nos vêem, mas não nos enxergam?!
Infelizmente, todos os dias, há notícias e notícias de casos de racismo, que no máximo são tratados como injúria racial, condenando os autores a penas ínfimas que somente evidencia um sistema estruturalmente racista.
Os dizeres da cineasta não se enquadram na liberdade de manifestação assegurada constitucionalmente (artigo 5º, IV), ao revés a extrapola, atingido de forma discriminatória, racista e odiosa a todos nós negros que lutamos diariamente contra o racismo; o reconhecimento de nossa história e a igualdade de oportunidades.
Tais falas configuram a “prática do racismo” vedado pelo artigo 4º, VIII c.c. artigo 5º, XLII da Constituição Federal e punido nos termos do artigo 20 da Lei nº. 7.716, de 05 de janeiro de 1.989, incumbindo, a nós integrantes ou não dos movimentos negros guerrearmos incansavelmente para que as declarações racistas não passem despercebidas e recebam a punição adequada.
O enfrentamento ao racismo e aos seus autores é uma luta árdua, contínua, porém essencial, para quiçá um dia gozarmos de uma verdadeira liberdade que há muito nos foi retirada!!
Mylena Christina Silva de Matos
Sub. Dir. Jurídica da Associação Nacional da Advocacia Negra- ANAN
[1] Extraído do site https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/07/mariani-ferreira-luciana-tomasi-filme-de-senzala.htm
Parabéns ANAN, pelo excelente texto de repúdio. Agora sim, sinto-me inteiramente representada por uma entidade jurídica e de minha inteira credibilidade. Estamos vivenciando momentos de “máscaras caindo” de racistas e o mais impressionante que são pessoas que detém poder em espaços artísticos e de grande alcance populacional. Agradeço por demais pelo o que representa essa entidade, sobretudo em relação aos Juristas Dr. Estevão e Dra. Mylena. Muito obrigada ✊🏿