Carta aberta ao Governador João Dória

Em um dia desses, no Estado de São Paulo, a Polícia Militar foi chamada para atender a uma ocorrência de violência doméstica contra uma mulher.

Pelo que dizem, a viatura da PM não foi bem recebida no local da chamada. Instigados a agir de maneira enérgica em razão das ofensas e ameaças partidas do suposto agressor, um dos PM’s presentes na ocorrência filmou a ação enquanto o outro assistia a cena de braços cruzados. Nenhuma arma saiu de dentro do coldre. Ao dar um passo em direção ao agressor, um dos agentes de segurança do nosso Estado ouviu: “Não pisa na minha calçada, não pisa em minha rua, eu vou te chutar na cara filha da p***, eu vou te chutar na cara”. O policial recuou. Com a chegada de reforço, o suposto agressor foi conduzido à Delegacia de Polícia. Sem algemas e no banco de trás da viatura.

O agressor está sendo processado na Justiça Criminal pelos crimes de resistência e desacato (artigos 329 e 331 do Código Penal). Ninguém se feriu.

Em outro dia, também no Estado de São Paulo, a Polícia Militar foi chamada para atender a uma ocorrência de perturbação ao sossego.

Pelo que dizem, a viatura da PM não foi bem recebida no local da chamada. Supostamente instigados a agir de maneira enérgica, os PM’s presentes na ocorrência não titubearam e logo sacaram as suas armas de fogo, apontaram para a cabeça dos supostos “perturbadores do sossego” e iniciaram uma truculenta revista pessoal em todos que estavam no local. Mesmo desarmado, um dos revistados foi imobilizado e sufocado no pescoço. Ao tentar defender essa pessoa do sufocamento policial, uma outra tenta defender o sufocado da agressão e acaba sendo derrubada no chão e pisoteada com o coturno do agente de segurança do Estado no pescoço até desmaiar. Com a chegada de reforço, os revistados foram conduzidos à Delegacia de Polícia. Todos presos, algemados e no camburão.

Além de resistência e desacato (artigos 329 e 331 do Código Penal), os revistados acabaram presos em flagrante também pelos crimes de desobediência e lesão corporal (artigos 129 e 330 do Código Penal). Uma das agressões policiais deixou um osso fraturado.

São dois episódios que demonstram um lamentável desrespeito da população à instituição da Polícia Militar de São Paulo.

A diferença? No primeiro caso é um homem branco e rico, e no outro é uma senhora comerciante negra de 51 anos de idade da periferia.

O homem branco recebeu toda a frieza da polícia. A mulher negra da periferia foi pisoteada no pescoço.

O homem branco agiu contra o Estado porque achou um desaforo uma viatura da PM presente na casa dele, situada em um bairro de elite. A negra mulher da periferia tentou defender um dos seus que estava sofrendo tortura.

E como querer que as instituições policiais sejam respeitadas pela população negra com tamanha diferença de tratamento? Fica impossível não associar as atividades da polícia sob o seu comando ao racismo.

Nós da ANAN, enquanto uma associação de negros advogadas e advogados, estudantes e bacharéis em Direito, estaremos cotidianamente, de maneira irrestrita, na defesa do Estado Democrático de Direito e todos dos princípios constitucionais previstos na CF/88.

Não queremos socializar as injustiças do Estado. Ninguém, em nenhum lugar, de nenhuma cor, de nenhuma classe social, merece ser vítima de violência policial.

Clamamos tanto para que seja sempre protegida e observada à população negra a dignidade da pessoa humana e a igualdade, bem como lutamos para que seja colocado efetivamente em prática o repúdio ao racismo inscrito no inciso VIII do artigo 4º da Carta Magna, mas também temos pleno respeito à presunção de inocência e ao devido processo legal.

Da mesma forma, queremos deixar claro que o inciso III do artigo 5º da Constituição Federação não excepcionou nenhuma raça ou condição social na disposição de que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

O que nós queremos é uma verdadeira democratização da justiça. Todos, sem exceção, merecem um julgamento justo e dentro dos limites da lei.

Porém, nos episódios aqui descritos (escolhidos dentro de tantos outros semelhantes porque ocorreram recentemente), a justiça não foi nada democrática. O ímpeto da polícia do Estado foi feroz com a população negra periférica e reservou a serenidade para a elite branca.

Enquanto houver racismo, não haverá democracia.

Mais do que “impactado”, “estupefato” e o seu sentimento de “repulsa” manifestados à imprensa, nós EXIGIMOS a tomada de medidas concretas, com a participação da comunidade negra nesse processo de urgente mudança, para que o Estado de São Paulo atue de maneira efetiva para impedir que episódios como esse nunca mais se repitam, e, se vierem a se repetir, que a lei seja cumprida e obedeça o mesmo rigor sem olhar a raça das pessoas.

Porque nunca é demais lembrar: vidas negras importam!

Texto de Diogo Francisco Sacramento – membro da ANAN/SP

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DA ADVOCACIA NEGRA- ANAN


“Este artigo reflete as opiniões do autor e não do veículo. A ANAN não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizada pelas informações, conceitos ou opiniões do (a) autor (a) ou por eventuais prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso da informações contidas no artigo.”

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